solid words, liquid thoughts

cuca fundida.

Wednesday, May 24, 2006

Espelhos da Alma

Eu nunca vou esquecer que um dia ele me falou: Nós vemos nos outros nossos próprios defeitos. Aquilo ficou tatuado no meu peito, como couro de boi marcado a ferro quente, a cicatriz profunda entre as outras tantas que a vida deixa na pele (Será que é por isso que as pessoas se tatuam? Para disfarçar as cicatrizes?).

Talvez eu brigue tanto com a minha mãe porque no fundo somos iguais. Ah, nossos pais. Nós tentamos nos rebelar, mas sempre vem alguém estragar tudo nos dizendo o quanto somos a imagem deles (cuspido e escarrado). Somos muito mais parecidos com eles do que temos a coragem de admitir (esculpido em Carrara). Com a idade, o desprezo adolescente transforma-se em orgulho da semelhança.

É a desilusão de perceber que nossos primeiros (e maiores) heróis são apenas humanos (Se nossos heróis nos decepcionam, como poderíamos ser perfeitos?) e a capacidade de amá-los mais ainda por o serem.

Desde que ele me disse aquilo, passei a criticar os outros com cautela. Não são os olhos que são espelhos da alma, pois passei a ver com outros olhos depois daquela conversa e minha alma ainda continua, o espelho deve ser o que os olhos nos mostram. O difícil é enxergar o que realmente vemos e não o que esperamos ver.

Sunday, May 21, 2006

Sobre febres e inseguranças

Pois um dia desses cheguei à infeliz conclusão de que sou movida à estresse. Parece que só consigo ser realmente produtiva sob pressão. Tenho uma capacidade de deixar tudo acumular para ser feito no último instante. Não que eu fique indolente, mas é aquela velha história de deixar um trabalho ocupar o tempo disponível que você tem para realizá-lo.

E aí fico com essa febre de viver e querer tudo ao mesmo tempo. E febre dá sede. Sede insaciável, me faz assumir compromissos demais ao mesmo tempo, até estar prestes a desmoronar sob o peso das obrigações e dos prazos que se aproximam. Minha mãe bem sabe que sofro dessa tendência a me despedaçar e sair flutuando até ser espalhada pelo vento. Tenha calma, ela me diz, que mania de querer tudo. Mas eu não consigo. É fácil pedir calma e perceber que não há necessidade de tanta pressa quando já se viveu muitos anos. Quando se chega à segunda metade da vida, já se cometeu alguns acertos em meio aos erros constantes. Se eu morrer amanhã não terei tido tempo nem de cometer metade dos seus erros, mãe.

Mas não é só isso que me leva a fazer tudo simultaneamente. É que se eu não fizer tudo, não faço nada. É tão fácil permanecer na inércia, a tentação é grande. Talvez eu tenha a esperança da inércia me manter em atividade.

Em boa parte é preguiça, mas também uma dose razoável de medo. Porque eu uso essa maquiagem de durona, mas na verdade estou tremendo. E nunca vai passar, aquele terror antes de pular do precipício. Me sentir suspensa no ar, sem saber se vou cair ou voar, torcendo para o chão ser macio. Toda manhã, ao levantar da cama, é a mesma rotina. O frio na barriga, a vontade de sair correndo. De dormir até os problemas me esquecerem, desistirem de me achar.

De que você tem tanto medo? me perguntou a moça do outro lado do espelho. Do fracasso? eu examinava seu rosto, nem bem adolescente, nem bem mulher, ou do sucesso? Evitei seus olhos e continuei a pentear seus cabelos e escovar os dentes daquele rosto que às vezes gosto, às vezes não. Ela me olhou com reprovação. Eu vi de canto de olho. Ela achou que foi escondido, mas estou até agora com aquele olhar cravado na memória.

Aí eu resolvi pular. O ar não deixa de ser uma outra solução na qual estamos imersos, afinal. Talvez eu bóie.

Friday, May 12, 2006

Tô aqui em casa, ouvindo ele cantar adeus, dor com um coro (meio duvidoso) de Hare Krishnas e lembro repentinamente do velho amorzinho (apesar da minha simpatia por pessoas que celebram seu deus com um canto alegre, certas idéias não me atraem, mas estou tergiversando, como diria um professor longínquo). Prefiro te ouvir dizendo que ela escolhe o esmalte meticulosamente, querido.

Achei o texto (bem velhinho e meio infantil) que fiz pra ele e que julgava perdido. Aqui está, de 21/01/03:

Obrigado

Eu queria lhe dizer obrigado. Queria ter dito ontem, mas o cansaço e minha conexão não permitiram. Obrigado por ser tão charmoso e até intelectual, sem ser afetado. Obrigado por cantar sorrindo e por cantar quase chorando, e principalmente, por me dar arrepio-de-boa-música. Obrigado. Obrigado pelos cachinhos ruivos e barba idem e por quase ser um sexy-ugly. Mas você não precisa ser (muito) sexy, você é charmoso. E você canta sorrindo, sorrindo sinceramente.

Obrigado ainda pela calça jeans rasgada no joelho e por me provar que é possível chegar aos 40 gostando de rock, cantando boa música, sem ser excêntrico, afetado, desiludido, e nem um velho querendo recuperar a adolescência perdida. Que é possível ser grande (como diria uma amiga muito querida) e não ser chato.

Enfim, obrigado por me surpreender num show do qual eu não esperava muito e que certamente não vai ser memorável pela música (sorry), mas sim pela impressão que deixou em mim. Mas tudo bem, “a lua finalmente apareceu”, né?

Minha mãe (acho) me ensinou que mulheres devem dizer Obrigada e homens Obrigado. Alguém faz isso?

Thursday, May 11, 2006

É tudo uma questão de visão

Meu amor, você se lembra quando o mundo era mágico e nós éramos inocentes? As coisas tinham contorno nítido, definido. Agora não sou apenas eu, você também se tornou míope. E não se fazem lentes para o nosso grau.

O professor alemão falou que na língua dele as pessoas dizem coisas com advérbios que nós dizemos com verbos. E os provérbios, como ficam? Santo de casa não faz milagre, a moça peruana me disse após o treino. Não faz mesmo. Se fizesse, a gente enxergava direito. Porque é muito fácil ver o trem descarrilando com os outros lá dentro, mas quando é com a gente, nós não percebemos até acontecer. E aí pedimos desculpas ao condutor, não tinha como prestar atenção, a paisagem era tão linda.

Mas não são os aduladores que me decepcionam, com suas máscaras de vidro partido. Quem enxerga através de vidro trincado só pode ver distorcido, não espero deles nada além do que já me deram. O triste é perceber que aqueles que te guiaram sãos e salvos quando você atravessava, cego, os campos de cacos de vidro da vida são os mesmos que te abandonaram sem rumo. A gente esquece que ninguém é perfeito e não consegue conciliar o lado maravilhoso com o decepcionante e perceber que no fundo são um só, estava bem ali, diante dos nossos olhos, o tempo todo. Precisamos de óculos novos.

Porque um dia a gente cresce e vê que o mundo não é tão preto e branco quanto nos ensinaram, e os tons de cinza se confundem. Eu fiquei velha demais para rebeldia adolescente e não consigo mais identificar qual música combina com o momento.

Preciso de ar puro, mas hoje em dia ele só vem poluído. Poluição sonora, não consigo distinguir as promessas verdadeiras das promessas-de-político. Devem ser elas que causam o efeito estufa (não é uma incoerência a gente achar normal que promessa de político não presta?). Vou tentar comprar ar puro na farmácia.

Tudo bem, com o tempo a gente se acostuma, cria anticorpos, o ser humano é um bicho tão adaptável. E é isso que me tira o sono à noite.

Friday, May 05, 2006

Já que estou falando de coisas que eu li, aqui vão mais algumas coisas:

God is dead. Meet the kids.

Finalmente li o Anansi Boys, mais novo livro do Neil Gaiman, um dos meus autores prediletos. Anansi Boys é uma volta ao universo mítico explorado e parcialmente criado pelo autor no livro American Gods. Trata-se em especial do deus-aranha Anansi e seu filho humano, Fat Charlie. A nova trama fala de Fat Charlie, que após a morte de Anansi, descobre que seu pai era um deus e que possui um irmão desconhecido que surge em sua vida para revirá-la ao avesso. Anansi é um dos personagens mais carismáticos de American Gods e apesar de ser um coadjuvante é divertido ver a ampliação do seu universo, como conhecer um pouco mais do mundo de um velho amigo.

Livro legal, bem menos denso e sombrio do que o American Gods, tanto que de início estranhei a mudança de clima e achei que não era tão bom. Neil Gaiman, pra variar, trata do divino como parte do cotidiano e fala de relações humanas, e principalmente familiares, com a sutileza e humor afiado de sempre. Ele fala das eternas relações complicadas entre pais e filhos e entre irmãos. Merece ser lido, de preferência após o American Gods.

Engraçado, lembrei agora que comecei meu blog antigo falando de American Gods, seriam padrões?


Iogurte, o todo-poderoso


Na verdade, não li esse, era algum artigo numa revista Claudia ou similar da vida, falando dos benefícios do iogurte para a saúde que não valia a pena ler. Achei o título hype.
Because Ursula K. LeGuin rocks (and my words don´t do her justice)

“I think,” Tehanu said in her soft, strange voice, “that when I die, I can breathe back the breath that made me live. I can give back to the world all that I didn´t do. All that I might have been and couldn´t be. All the choices I didn´t make. All the things I lost and spent and wasted. I can give them back to the world. To the lives that haven´t been lived yet. That will be my gift back to the world that gave me the life I did live, the love I loved, the breath I breathed.”

(The Other Wind – Ursula K. LeGuin)

Sabe aqueles livros que acabam e você queria que eles continuassem? Essa autora conseguiu escrever cinco deles e eles formam uma história só. Ainda tem um sexto livro de crônicas ligadas ao mundo imaginário criado por LeGuin, Earthsea, um mundo onde magia e dragões são coisas do dia-a-dia, mas que lidam com temas universais e por isso mesmo próximos à nossa realidade.

É interessante que a autora faz questão dos seus personagens principais serem homens e mulheres de fisionomia semelhante a índios norte-americanos ou negros, mas o faz sem ser aquela coisa politicamente correta chata (lógico que também há espaço para os brancos e, talvez os mais interessantes de todos, os dragões). O Earthsea Cycle de Ursula K. LeGuin é leitura recomendada para todos, provavelmente a melhor coisa de fantasia após o Tolkien.

Tuesday, May 02, 2006

(des)estruturas (sociais)

Ele era louco e sentou-se ao meu lado. Usava bermuda e camisa velhas, chinelo e um casaco de lã. A noite estava fria no terminal de ônibus.

Me perguntou o destino do ônibus naquele ponto. Respondi e no mesmo momento um casal sentou-se no banco entre nós dois. Voltei a ler minha revista com um misto de alívio e vergonha de estar aliviada.

A mulher foi ver a tabela de horários do ônibus e o homem recém-chegado ficou sentado com a filha semi-adormecida no colo. Ouvi o louco perguntar a idade da menina e dizer que tinha uma filha da mesma idade e um menino mais novo. O tom de orgulho em sua voz era perceptível. Disse que morava no mesmo bairro que eu, interface entre classe média baixa e classe média alta, que ele era humilde mas morava lá. Me perguntei se ele morava em uma das casas dilapidadas próximas ao meu prédio ou debaixo do viaduto perto da lagoa.

O homem com a filha meio ouvia e meio ignorava o louco. Às vezes respondia, às vezes não. Não o culpo. O louco me pareceu o ser genuinamente, não aparentava embriaguez alcoólica ou narcótica, passava até uma impressão de contentamento apesar das agruras da vida. Mas a vida anda tão violenta ultimamente e o outro homem tinha uma filha pequena com a qual se preocupar, vai que o louco fosse um homem violento, tivesse uma arma ou fosse ladrão. Tantas histórias de terror cotidiano que ouvimos hoje em dia.

O ônibus chegou e todos subiram. O louco ficou na parte da frente, antes da roleta, segurando uma roda de bicicleta inexplicável que eu não havia notado antes. Alguns minutos e passageiros depois, partimos do terminal.

O artigo da revista que eu estava lendo falava da exploração de uma pedra preciosa na Tanzânia e como ela afetava a vida dos mineradores que iam tentar a sorte em minas clandestinas, em condições subumanas, muitas vezes à custa da saúde e da vida, e de como os homens Maori abandonavam as tribos em busca de riqueza rápida e improvável. E eu pensava se um dia será possível deixar de existir pessoas a margem de meios decentes e acessíveis para mudar de vida em países do terceiro mundo.

O louco desceu dois pontos antes de mim, o que trouxe nova sensação de alívio, pois o caminho do ponto para o meu prédio era escuro e, por ser um feriado, deserto.

Na manhã seguinte, indo para a faculdade, passei pelo louco no sinal de trânsito na esquina da igreja e a ficha finalmente caiu. Sabia que seu rosto era familiar, passava por ele todos os dias em que ia mais cedo para a universidade.

Passei reto por ele, sem o encarar, momentâneamente tensa porque ele sempre fala com os pedestres e motoristas no sinal. Acho que não me reconheceu. E o abismo entre classes sociais me pareceu ainda mais intransponível.