solid words, liquid thoughts

cuca fundida.

Monday, November 27, 2006

Dessincronizada

Tentei te enviar um bilhetinho escrito no guardanapo da lanchonete, mas você não viu. Já tinha pago a conta. Tomou um último gole do guaraná e colocou o copo em cima do guardanapo que o garçom deixou na mesa junto com seu troco. O copo suava e borrou minha letra no papel. Devolvi a Bic azul emprestada para a senhora com o neto e agradeci.

O bilhete era resposta ao seu recado escrito no vidro embaçado da minha janela durante a chuva. Mas eu estava cozinhando o jantar e ouvindo Ray Charles e não reparei. Tudo bem, fica para a próxima.

Dia desses, você me chamou do outro lado da rua, mas eu não percebi. Meu ônibus havia chegado e você sabe que eu moro longe. Tentei compensar te mandando uma canção de bem-te-vi, mas a banda começou a tocar e ninguém ouviu o pobrezinho.

Resolvemos então tomar café com bolinho de chuva naquela tarde e também não deu certo. Meu relógio marcava seis da tarde e no seu ainda eram três e quinze.

Às vezes parece que o baile acaba antes de começar.

Sunday, November 26, 2006

Geminianos tem fama de inconstantes. Eu acho tudo intriga da oposição, mas já me disseram que sou de lua. Então desenterrei escritos do meu caderninho de viagem que usei na Espanha esse ano.
Texto de 16/07/06


De lua

Eu tenho duas eus. Ta, na verdade eu tenho muitas, mas para o propósito desse texto, vamos considerar que são apenas duas. Uma classificação não exclui necessariamente a outra.

Eu gosto de chamá-las de a Passional e a Racional. Elas estão sempre brigando pela dominância dentro de Mim. Mim é como chamo o conjunto todo (sinapses, carne e espírito abstrato) que habita esse mundo e interage com ele.

É fácil saber quando a Racional está no comando, ela é a cientista fria e calculista, a observadora distante (na medida do possível) do comportamento desses animais que esquecem que o são, os tais dos humanos. Seu humor é ácido, cruel e certeiro.

Já a Passional é mais mutável. Ela chora (muito), ri mais ainda, sente raiva num grau que a consome, causando dor no estômago e garganta inflamada na pobre de Mim e paixão de tremer, perder a fome e suar frio.

Funciona assim: quando Mim sofre um choque moderado, desses quase cotidianos, a Passional toma conta de Mim, intensificando suas percepções astronomicamente até a Racional voltar ao páreo. Quando o choque ultrapassa o limite do suportável, a Racional é soberana e as percepções de Mim se reduzem ao nível basal de sobrevivência até a Passional voltar a si.

E assim se estabelece um ciclo contínuo, de altos e baixos, esquerdas e direitas, girando em torno de um eixo de equilíbrio em rotação.

Dizem por aí que essa tal de Mim não tem um humor muito estável. Mentira, é apenas uma questão de se distanciar o suficiente para poder ver que o equilíbrio é dinâmico.

Wednesday, November 01, 2006

Espirais

Espirais. Espirais de cobre, ouro, ébano e sândalo. Fios retorcidos formando cachos, capturando a luz e o olhar dela. Ela era fascinada por espirais, todas elas. Invejava seu movimento e rebeldia.

Ele tinha espirais negras, volumosas, nem muito compridas, nem muito curtas. E ela não conseguia desviar os olhos quando ele passava e nem manter as mãos longe delas, completamente hipnotizada.

Gostava de enrolar os dedos nos cachos dele. Sentir sua estranheza, comparada às próprias mechas lisas, escorregadias e arredias ao toque. Podia ficar horas observando as formas e puxando os cachos para vê-los voltando ao lugar, como molas que encolhem após serem estiradas.

Ele ria, ria e falava: - Meu cabelo é ruim, mas é macio...

Ela não se importava se o mundo todo achasse ruim. Ela gostava de espirais.