solid words, liquid thoughts

cuca fundida.

Tuesday, May 02, 2006

(des)estruturas (sociais)

Ele era louco e sentou-se ao meu lado. Usava bermuda e camisa velhas, chinelo e um casaco de lã. A noite estava fria no terminal de ônibus.

Me perguntou o destino do ônibus naquele ponto. Respondi e no mesmo momento um casal sentou-se no banco entre nós dois. Voltei a ler minha revista com um misto de alívio e vergonha de estar aliviada.

A mulher foi ver a tabela de horários do ônibus e o homem recém-chegado ficou sentado com a filha semi-adormecida no colo. Ouvi o louco perguntar a idade da menina e dizer que tinha uma filha da mesma idade e um menino mais novo. O tom de orgulho em sua voz era perceptível. Disse que morava no mesmo bairro que eu, interface entre classe média baixa e classe média alta, que ele era humilde mas morava lá. Me perguntei se ele morava em uma das casas dilapidadas próximas ao meu prédio ou debaixo do viaduto perto da lagoa.

O homem com a filha meio ouvia e meio ignorava o louco. Às vezes respondia, às vezes não. Não o culpo. O louco me pareceu o ser genuinamente, não aparentava embriaguez alcoólica ou narcótica, passava até uma impressão de contentamento apesar das agruras da vida. Mas a vida anda tão violenta ultimamente e o outro homem tinha uma filha pequena com a qual se preocupar, vai que o louco fosse um homem violento, tivesse uma arma ou fosse ladrão. Tantas histórias de terror cotidiano que ouvimos hoje em dia.

O ônibus chegou e todos subiram. O louco ficou na parte da frente, antes da roleta, segurando uma roda de bicicleta inexplicável que eu não havia notado antes. Alguns minutos e passageiros depois, partimos do terminal.

O artigo da revista que eu estava lendo falava da exploração de uma pedra preciosa na Tanzânia e como ela afetava a vida dos mineradores que iam tentar a sorte em minas clandestinas, em condições subumanas, muitas vezes à custa da saúde e da vida, e de como os homens Maori abandonavam as tribos em busca de riqueza rápida e improvável. E eu pensava se um dia será possível deixar de existir pessoas a margem de meios decentes e acessíveis para mudar de vida em países do terceiro mundo.

O louco desceu dois pontos antes de mim, o que trouxe nova sensação de alívio, pois o caminho do ponto para o meu prédio era escuro e, por ser um feriado, deserto.

Na manhã seguinte, indo para a faculdade, passei pelo louco no sinal de trânsito na esquina da igreja e a ficha finalmente caiu. Sabia que seu rosto era familiar, passava por ele todos os dias em que ia mais cedo para a universidade.

Passei reto por ele, sem o encarar, momentâneamente tensa porque ele sempre fala com os pedestres e motoristas no sinal. Acho que não me reconheceu. E o abismo entre classes sociais me pareceu ainda mais intransponível.

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